v. 4 n. 1 (2024): Aondê: Revista de Pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática

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Editorial

Volume 4, Número 1, Ano: 2024, ISSN: 2965-1522
DOI: https://doi.org/10.29327/2309399.4.1

"As agendas de pesquisa estão sendo redefinidas pelas inquietações políticas e pelas trajetórias desse público jovem e negro oriundo de escolas públicas, e o advento e a ampliação das redes sociais vêm propiciando um espaço de debate público que tem sido ocupado por jovem feministas negras orientadas por pautas que envolvem não apenas raça, classe e gênero, mas também sexualidade, território, política e outras dimensões organizadoras das desigualdades sociais]" (Rios; Lima, 2020, p.17-18).

 

A citação que dá início a este editorial nos alerta para um novo panorama da educação: aquele cujas pautas sociais urgentes convocam os conhecimentos sistematizados a servirem de apoio para a busca por saídas e meios de ação para as situações que se impõem como um limite para o agir. 

Estas questões urgentes são aquelas que se interpõem às vidas das pessoas que compõem a maioria da população mundial e que têm constantemente seus direitos universais cerceados, como a insegurança alimentar - seja pela escassez de alimentos, pelo uso descontrolado de agrotóxicos ou pela fome como método de guerra -, como a falta de acesso à saúde, à educação e à segurança, como a privação de trabalho digno e remuneração condizente com suas necessidades básicas, como a constante exclusão científica e tecnológica, como as guerras e os conflitos armados - principalmente aqueles que não interessam à grande mídia ou aos países ricos - ou seja, os constantes conflitos na África e Oriente Médio - e, certamente, os limites da participação democrática efetiva para a tomada de decisões individuais e coletivas - seja em questões como a violação dos corpos de mulheres e crianças, o aborto ou eleições em paises que vivem sob regimes ditatoriais. Todos estes elementos, embora sejam comuns à grande maioria da população mundial, atingem de forma mais incisiva as populações mais pobres, negras e indígenas, as mulheres e as crianças.

Por coincidência, escrevemos este editorial no mês de março do ano de 2024, quando se comemora, além do mês das mulheres, o dia 21, dia internacional para a eliminação da discriminção racial. Porém, a sociedade foi assolada por notícias intensas sobre abusos cometidos contra mulheres, mas principalmente, contra mulheres negras, que ainda são a parcela da população mais acometida pela miséria e pela violência. Então, questionamos sobre qual é a mulher que é comemorada neste mês? Qual é a mulher mais protegida e representada? Além disso, quais os espaços que são garantidos a todas as mulheres, quando o assunto é desenvolvimento científico e tecnológico, participação ativa e impactos na democracia? 

As datas são importantes para marcar as lutas, porém precisam conscientizar mais pessoas e avançar em termos de fazer valer os ideais democráticos de participação social e igualdade de direitos. Por isso mesmo, o cerne destas questões passam pela necessária manutenção da democracia, bem como sobre a sua reconstrução orientada para a reparação destas populações marginalizadas e discriminadas.

Neste quadro de desesperança, mais uma vez, a educação é a instância que se mostra potencial. Não se trata da educação aos moldes como a conhecemos, mas um projeto de educação que tenha por meta a emancipação das pessoas. Uma emancipação que não acontece de forma individual, que não se conquista  sozinho, mas na interação com o outro e com o ambiente. Este propósito humanitário-ambiental da educação é a expressão máxima do que propõem as vertentes críticas da educação em ciência, tecnologia e sociedade - CTS. Embora haja diferentes correntes de pensamento, a educação CTS nasceu deste propósito e a ele deve seguir ligada para que seu projeto de formar pessoas engajadas na luta pela melhoria da qualidade da vida humana seja garantida. 

Neste ponto, é importante ressaltar que, para que este projeto da educação CTS se modernize, novamente, ele deve estar amplamente comprometido às questões de raça e gênero, além da categoria do trabalho. Não há possibilidade de que esta concepção educacional avance sem que suas temáticas sejam comprometidas com tais categorias, do mesmo modo que não há possibilidade de que a sociedade se livre dos problemas que a aflige, sem que tenha uma educação verdadeira.

Assim, ao relacionar ciência, tecnologia e sociedade, devemos levar à sério a construção da ciência que seja democrática em todos os níveis, desde a seleção das pessoas que produzem o conhecimento, em interação com a sociedade, até a sua comunicação. Com isso, queremos dizer que sistemas de cotas e outros mecanismos que possibilitem que pessoas negras e indígenas produzam conhecimento científico, são fundamentais para a verdadeira democracia. Estamos todas/os cansadas/os de uma ciência dominante permeada por influências dos países de poder econômico e capitalismo avançado, cujos conhecimentos, muitas vezes, são produzidos a partir de interesses das empresas privadas em função da manutenção do poder. Não se trata de negar a ciência e o conhecimento científico, mas de democratizar ambos. É necessário produzir ciência para a grande maioria da população global. E não basta que a ciência chegue até essas pessoas como produto. A ciência deve ser feita a partir de seus interesses, de acordo com suas influências e para a solução dos problemas dos 99%, nos referindo à Nancy Fraser. Para esta autora:

 

"Introduzindo uma ‘ruptura metabólica’, inaugurou o que cientistas chamam hoje de ‘Antropoceno’, uma era geológica inteiramente nova em que a atividade humana tem impacto decisivo  nos ecossistemas e na atmosfera da Terra. Na verdade, esse termo é enganoso, uma vez que o principal culpado não é a ‘humanidade’, e sim o capital. Os efeitos, todavia, são reais o suficiente. Após três séculos de predações do capital, coroados pelo ataque atual do neoliberalismo ao que restou dos bens ecológicos comuns, as condições naturais para a acumulação se tornaram agora um foco central da crise capitalista" (Fraser; Jaeggi, 2020, p.53).

 

Neste sentido, a educação CTS e a pesquisa em ensino de ciências e matemática precisam se desvencilhar de velhas teorias e bases epistemológicas racistas e machistas. Para tanto, não é difícil encontrar boas referências atuais que não ignoram e até mesmo se prestam a refletir filosoficamente estas questões e suas implicações para o desenvolvimento científico. Assim, a Aondê: revista de pesquisa em ensino de ciências e matemática afirma seu compromisso em buscar publicar artigos de resultados de pesquisa e experiências em sala de aula que se pautem sob estas orientações, também orientados para o fim do racismo e do machismo, a começar pela ciência como base do conhecimento e emancipação das pessoas.

 

Profa.Dra. Nataly Carvalho Lopes

Profa.Dra. Isabela Cust´ódio Talora Bozzini

Prof.Dr. Estéfano Vizconde Veraszto 

Editores

 

Referências

Fraser, Nancy; Jaeggi, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

Rios, Flávia.; Lima, Márcia. Introdução. In: Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. 1 ed. São Paulo: Zahar, 2020, p.4-22.

Publicado: 2024-03-26